Um soco no estômago: "Morra, Amor" de Ariana Harwicz

"Andei pela casa, a escopeta na mão, até o canto da cozinha, onde, torcido sobre um pano nojento, ele soluçava de dor. Apontei e, sem pensar em nada, mas com a atitude de um soldado israelense, escutei na minha cabeça a ordem. Fogo! Fogo, caralho!, e dei o primeiro tiro da minha vida."

Ler Morra, amor me deixou desorientada.

Comparada à Virgínia Woolf pelo fluxo de consciência tão marcante na narrativa, Ariana Harwicz entrega uma história sem rodeios, direta ao ponto, crua, intensa e selvagem. A protagonista e narradora, cujo nome não sei porque ela não diz, nos insere em seus pensamentos mais íntimos e aleatórios, nos permitindo sentir as dores e o peso das responsabilidades que carrega: ser mãe, esposa e mulher.

"Com uma das mãos seguro meu nenê, com a outra a espátula. Com uma das mãos preparo a comida, com a outra me apunhalo. Que bom ter duas mãos. Que prático!"

Ler Morra, amor me deixou arrepiada.

Em algumas passagens o livro menciona Mrs Dalloway, fazendo um link ainda mais direto com de Virgínia Woolf; e menciona também Zelda Fitzgerald –romancista, contista, poetisa, dançarina e pintora norte-americana. Zelda foi esposa de F. Scott Fitzgerald (autor de O Grande Gatsby) e os dois eram considerados o casal de referência da Era do Jazz. Zelda era uma mulher de espírito livre e suas atitudes desafiavam o machismo e o patriarcado da época. Infelizmente, por volta de 1930 ela foi diagnosticada com transtornos mentais e passou o resto da vida num hospital psiquiátrico. A menção ao seu nome em Morra, Amor é um fato muito interessante e abre margem para várias interpretações a cerca da nossa narradora.

Zelda Fitzgerald

Além dessas, outras referências são citadas ao longo do livro e eu recomendo que, caso não as conheça, pesquise todas elas durante a leitura. Você verá que, dessa forma, enxergará "Morra, amor" de um jeito diferente, como se tivesse um terceiro olho. 👁️

"O que me salva nesta noite e no resto não é de jeito nenhum o amor do meu homem ou o do meu filho. O que me salva é o olho do cervo, ainda me olhando."

Sobre o enredo, não há mais nada que eu possa dizer além de: o que uma mulher à beira da loucura, com sintomas que podem ser de depressão pós-parto, poderia fazer, sentir ou pensar enquanto busca incansavelmente pela sensação de pertencimento e liberdade?

Morra, amor não é um livro que vai agradar todo mundo. A narrativa pode parecer confusa, tem perguntas no meio de frases e os diálogos são, em sua maioria, em forma de pensamentos... São lembranças do que foi dito somado ao que foi pensado e às vezes é difícil achar uma coerência, mas, para mim, é justamente isso que faz o livro ser tão memorável. Além disso, a forma que alguns temas do universo feminino são abordados podem incomodar algumas pessoas. Ser mãe, esposa e mulher (percebam que mulher está sempre por último e isso é intencional) é um fardo pesado demais e a protagonista não está disposta a esconder isso. Não de nós. Livro recomendadíssimo para quem gosta de leituras desafiadoras.

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