A Dama e A Criatura resgata o legado de Milicent Patrick das profundezas da Lagoa Negra



Por que quando pensamos em monstros e seus criadores, sempre remetemos ao masculino?


Essa pergunta ecoou na minha cabeça por dias enquanto eu lia A Dama e A Criatura. Eu, como fã de filmes de terror desde que me entendo por gente, consigo lembrar facilmente de monstros icônicos do cinema e seus criadores, mas quando penso nas mulheres, poucas me vêm à memória num primeiro instante.

A indústria cinematográfica sempre foi dominada por homens, isso é fato. Mas nós sabemos que existiam mulheres ali dando tudo de si e contribuindo imensamente com arte, trabalho e talento. Mas por que se falam tão pouco delas? E quando falam, por que são tão facilmente desacreditadas? A resposta para essas perguntas é bem clara: ainda precisamos percorrer um longo caminho para ocuparmos espaços que também podem ser nossos. 

Se em pleno século XXI, com tantos movimentos e lutas sociais em pauta, a representação feminina dentro da ficção ainda cai em estereótipos como femme fatale e vítimas virginais, ou até mesmo personagens que rompem essas barreiras mas, que, de alguma forma, ainda são coadjuvantes ou condicionam suas decisões a partir de um personagem masculino; imaginem só como era para Milicent Patrick, nos anos 1950, vivendo os horrores do patriarcado e do sexismo todos os dias?


"Quando você faz o melhor que consegue e é boa, mas você sabe, boa para uma garota, você precisa se tornar mais do que você mesma, mais do que humana."


Ler A Dama e A Criatura foi um divisor de águas na minha vida. Conhecer a história de Milicent através do olhar de fã da Mallory O'Meara me proporcionou uma experiência única: eu consegui me identificar com as duas, seja na história, nas escolhas, na paixão pelo cinema de terror e, principalmente, na condição de ser mulher em um espaço que há muito tempo foi ocupado por homens, em sua maioria. O universo feminino e todas as suas características foram (e infelizmente ainda continuam sendo) vistos como fragilidade. Vestidos, salto alto e maquiagem são sinônimos de fraqueza ou futilidade comparados a um par de calças, tênis e camisetas folgadas. É como se olhassem para nós e nos quisessem sempre prontas para o combate. Mallory O'Meara, produtora, escritora e roteirista, usava roupas largas para trabalhar na tentativa de driblar qualquer fragilidade que pudessem associar a ela. Enquanto isso, Milicent Patrick usava e abusava de trajes pomposos, maquiagem, brincos e colares nos estúdios da Universal em 1950. A coragem que ela tinha para ser quem era e esbanjar sua vaidade, inspirou Mallory e a mim, e essa é apenas uma das muitas lições que aprendi neste livro.

"Além da ilustração, um dos grandes talentos de Milicent era estar linda e elegante em frente a uma câmera fotográfica ou de cinema."



Milicent Patrick é a Dama da Lagoa Negra. A primeira mulher responsável pelo design de um monstro para longa-metragem. É assustador pensar que enquanto a Criatura ganhava cada vez mais espaço na história do cinema e no imaginário das pessoas, o nome de Milicent desaparecia nas profundezas da lagoa. Seu nome não aparece nos créditos e até pouco tempo atrás seu legado na cinematografia era, nem sequer, cogitado. 

A beleza de Milicent, assim como o talento, começaram a ganhar cada vez mais espaço, para a ira de Bud Westmore, diretor do departamento de maquiagem e efeitos visuais da Universal. Com o sucesso previsto de O Monstro da Lagoa, a Universal Studios organizou uma turnê de divulgação que contava com a presença de Milicent. Assim que ela retornou, ela foi demitida do estúdio, seu nome foi retirado dos créditos da Criatura e ela nunca mais foi responsável pela criação de monstro algum. Pensar na história de Milicent é pensar na histórias de muitas outras mulheres também silenciadas por monstros reais. A importância de resgatá-las está em dar voz a um legado que merece e precisa repercutir.

"Uma das coisas mais difíceis sobre misoginia na indústria cinematográfica não é enfrentá-la, é ter que controlar a sua raiva para que, quando você fale a respeito, seja levada a sério. As mulheres não têm chance de sair quebrando tudo como Godzilla. Porque se isso acontecer, alguém vai simplesmente perguntar se elas estão menstruadas."



Agradeço muito a Mallory O'Meara por ter se guiado pela paixão pelo cinema e pela Milicent para escrever um livro tão completo e inspirador. Agradeço também a curadoria da DarkSide Books e da Macabra Filmes por trazerem essa obra-prima para nós, leitores e apaixonados por terror, com tanto cuidado e capricho. Milicent Patrick se tornou uma das minhas super-heroínas e tem um espacinho exclusivamente dela aqui no meu coração.

Que nós, mulheres, possamos nos expressar cada vez mais, ocupar incontáveis lugares e posições, sermos ouvidas e vistas além da nossa aparência. Que possamos ser quem somos sem medos e sem amarras. E que possamos, sempre, da melhor forma possível, inspirarmos umas as outras.

"Milhares e milhares de mulheres estão por aí, sentindo-se sozinhas com suas paixões criativas. Milhares nem sequer consideram a ideia de fazer arte, porque não conseguem imaginar um lugar para si nesse mundo. O legado de Milicent Patrick não é apenas um conjunto de trabalhos influentes. Ele também é um convite."

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